É muito difícil resistir aos desafios da passagem do tempo e da era da tecnologia, mas é possível. Reabilitado e quase uma vila fantasma, mantém-se estoicamente atada às rochas onde se ergue o castelo, a muralha e as casas. Porque em Sortelha é difícil distinguir onde termina o maciço granítico e onde começa uma construção. Como naquela outra jóia chamada Monsanto, a pedra e a mão do homem fundem-se em perfeita harmonia como se as casas tivessem nascido como cogumelos da pedra inerte.
Sortelha, tal como Monsanto, faz parte da rede de Aldeias Históricas de Portugal onde o tempo não é medido em minutos. Mas Sortelha tem algo de único neste grupo privilegiado, ao qual pertencem outras maravilhas como Castelo Mendo, Belmonte, Almeida e Castelo Rodrigo. Talvez seja pela sua localização privilegiada, como uma torre de vigia entre a Serra da Estrela e da Malcata, pela sua configuração urbana ou porque residem apenas dez pessoas no seu centro histórico. Seja qual for o motivo, Sortelha parece nos levar a um lugar irreal que não condiz com o mundo atual. É o que alguns chamariam de “oopart”, objetos fora do tempo que aparecem em contextos totalmente desconcertantes.
Embora cada vez mais pessoas vão a Sortelha de propósito, uma das razões pelas quais nunca será uma espécie de parque temático turístico é a sua inacessibilidade. Não fica a caminho de qualquer lugar, nem perto de qualquer outro. Chegámos a Sortelha num dia produtivo que primeiro nos levou a visitar a vila de Belmonte e depois a fazer o percurso pedestre dos meandros do rio Côa no Sabugal. Chegamos a Sortelha quando o sol e os poucos visitantes que ficaram na vila começaram a retirada.
O que ver em Sortelha, uma viagem no tempo
É difícil explicar como é atravessar a porta da vila e entrar na cidade muralhada. Naquele exato momento, algo acontece no relógio. As torres param e uma viagem tranquila e repousante pela Idade Média começa. A tentação de nos perdermos nas ruas calcetadas de Sortelha confunde-se com a necessidade imperiosa de conquistar o seu castelo. Porque a imagem desta vila não pode ser compreendida sem esta construção que foi mandada construir no século XIII pelo rei D. Sancho II. Do castelo podemos ver tudo e muito mais. Uma paisagem intocada de oliveiras, azinheiras, pinheiros e castanheiros que parece não ter fim. Tamanha beleza natural explica o motivo que levou o monarca a ordenar a construção do castelo neste local remoto. Não para desfrutar das vistas panorâmicas, é claro, mas para ver o inimigo chegar com uma antecipação extraordinária.
Quem visita o castelo não consegue parar de olhar para fora da chamada varanda de Pilatos. Vista de fora, parece a típica sacada das histórias a que as princesas foram ver chegar o seu querido príncipe. A história é muito menos romântica porque deste lugar eram lançados projéteis, pedras e até água a ferver e óleo na defesa dos atacantes. Isso foi feito até a Guerra da Independência, onde as tropas de Napoleão demoliram grande parte do muro de Sortelha, que foi reconstruído mais recentemente.
No mês de setembro, Sortelha recria as lutas medievais entre os reinos de Leão e Portugal no programa “Muralhas com história”. Música, teatro e desfiles que remetem ao passado lustroso da vila.
Embora o castelo seja o seu emblema e símbolo, Sortelha é um conjunto de pequenas maravilhas. Saindo dos vestígios da obra encomendada por D. Sancho II encontramos um clássico nas Aldeias Históricas de Portugal, o pelourinho. A partir daí penetramos pelo entrelaçado de ruas que podem ser contadas pelos dedos de uma mão. Ruas de paralelepípedos construídas em rocha de granito como se fossem uma extensão da mesma. Casas baixas com um ou dois pisos, perfeitamente restauradas onde só falta vida. Porque Sortelha é como uma Veneza ou Bruges onde as pessoas se encontram fora dos muros. Neste caso, por razões muito diferentes e com um resultado também muito diferente. Enquanto o turismo nas cidades italianas e belgas tem deslocado os nativos, em Sortelha o centro histórico estava completamente abandonado e desabitado. A iniciativa de Aldeias Históricas de Portugal conseguiu fazê-la renascer das cinzas sem perder um pingo da sua fisionomia medieval. Enquanto isso, as cerca de 500 pessoas registadas nesta aldeia residem fora dos muros em casas modernas e atuais, mas sem perder de vista a origem de sua terra pelas janelas.
Nessas ruas podemos ver a curiosa casa número 1. Recebe este nome por uma inscrição que aparece numa das suas portas, mas pode perfeitamente ser por ser a mais antiga de Sortelha. Na verdade, data do mesmo século em que foi construído o castelo, o 13º. A chamada casa árabe, aquela com curiosa janela manuelina, do governador ou da Falcão, são outras construções únicas que Sortelha nos mostra. Algumas dessas casas foram convertidas em alojamentos turísticos ou hotéis. Numa delas, no bar do Forno, bebemos um refrigerante enquanto contemplamos a Serra d’Opa, onde fica Sortelha. Curioso bar que fica dentro de uma pequena caverna onde cabem apenas duas ou três pessoas. Não é nada mais necessário, porque o interesse do estabelecimento está no terraço panorâmico, onde se pode assistir a um pôr do sol digno de uma cena de cinema.
À semelhança das restantes Aldeias Históricas de Portugal, Sortelha possui painéis informativos em cada monumento ou casa e um mapa de localização à entrada da vila.
Além de entrar nas suas ruas, uma boa forma de explorar Sortelha é caminhar junto à parede. Os seus dois metros de largura permitem este passeio, embora seja aconselhável ter cuidado nos pontos que sofreram alguma fratura. Desta forma podemos chegar à Torre do Facho, local onde uma marca indica que estamos a 786 metros acima do nível do mar. Outra torre, a Sineira é uma torre de vigia perfeita, mas desta vez para captar a melhor imagem do castelo de Sortelha.
As rochas graníticas que dominam a paisagem em Sortelha apresentam formas curiosas e marcantes que dão asas à imaginação. Uma delas chama-se “cabeça da velha” porque lembra o rosto de uma mulher idosa.
Sortelha (anel), cujo nome vindo do jogo disputado com cavaleiros medievais que consistia em inserir a sua lança num anel. O próprio José Saramago apaixonou-se pela vila. Na sua obra “Viagem a Portugal”, o Prémio Nobel dedica algumas linhas a esta vila, garantindo que lá ir é “entrar na Idade Média” e onde se destaca a “enormidade das suas paredes”. Mas Sortelha também aparece em outro texto de Saramago, “A Viagem do Elefante”. Nesta localidade passa-se uma das passagens desta curiosa história em que viaja pelo país num paquiderme chamado Salomão, presente do rei João III de Portugal ao seu primo Maximiliano da Austrália. Em homenagem ao saudoso autor e a esta obra, nas ruas de Sortelha avista-se um pequeno elefante esculpido em granito. Talvez um dos poucos sinais de relativa modernidade que nos faz acordar do sono do tempo parado. Um sonho que acaba completamente quando voltamos pela porta da villa e entramos no carro para voltar à realidade. A máquina do relógio começa a girar à medida que deixamos para trás este presente para os sentidos.